O passado sempre me visita e ele doía sempre um pouco mais...
- Natália A. de Almeida & Douglas D. Nunes
- 9 de jun. de 2021
- 6 min de leitura
LITERANDO A HISTÓRIA
PRPA - Projeto Revista Problematiza Aê! Jun. 2021 Ano I Nº 005
Por Douglas Duarte Nunes [1] & Natália Alves de Almeida [2]
Escravidão e sua dor que ecoa sobre o presente
Sempre criamos a ilusão de que o passado é algo distante da nossa realidade e de que os acontecimentos passados não fazem parte do nosso presente. Ao olhar para o passado escravista, podemos ver como ele é presente na sociedade e na vida das pessoas negras. Há uma negação das dores da escravidão, há monumentos erguidos em nome de traficantes de escravos, a verdade é que não importa o quanto os livros de história tentem, jamais conseguiremos mensurar esse dor. O passado da escravidão, assim como outros passados dolorosos, devem ser respeitados, mas o que dizemos a aqueles e aquelas quando erguemos estátuas e glorificamos aqueles que os torturaram? Dizemos que aquela dor não importa, que suas lutas não importam. Na verdade, o passado escravista ecoa sobre o nosso presente, quando ainda vimos tanto sendo tirado de pessoas negras, quando vemos mães chorando a perda de seus filhos, esposas chorando a perda de seus esposos, ele ecoa e ecoa, e dói cada vez mais.
Dana’s, Sarah’s e Alice’s, quantas mulheres a escravidão machucou?
A narrativa do livro gira em torno de uma mulher negra, Dana Frankilin, que não sabendo como, vai parar em momentos da escravidão no Sul dos Estados Unidos, nunca indo em um mesmo momento do passado, mas sempre acompanhando uma mesma pessoa, Rufus, Weylin, que ela descobre ser seu antepassado distante. Em cada viagem, Dana, sempre se depara com alguma violência que os escravizados e escravizadas passaram durante muito tempo, ela sempre se depara com alguma dor, cada vez mais cruel que a outra. O que podemos perceber através de suas viagens é que esse passado sempre revisita a vida de mulheres negras de alguma forma, mulheres negras continuam sendo marginalizadas, sexualizadas, perdendo seus filhos para a violência policial. A cada viagem de Dana ela percebe como essa dor é muito mais profunda do que qualquer livro de história poderá descrever um dia, sendo que os livros de histórias ainda negligenciam muito toda essa dor vivida que ainda ecoa na vida de pessoas negras.
Em uma das passagens do livro, enquanto Dana estava no passado, ela vai à biblioteca, pois em sua vida no ano de 1976, era escritora e gostava de ler, mas o dono da fazenda a vê e a violenta fisicamente, pois era inadmissível que um “escravo” ousasse procurar ler algo ou querer estudar, além disso, ela poderia passar o que aprender para os outros, na visão deles, quando os escravos se interessam pela leitura e para aprender eles não eram pessoas, eram mercadoria que deviam trabalhar, analisamos em como por muito tempo pessoas negras não tiveram acesso ao ensino, saúde, moradia e trabalho digno, há movimentos de resistência que lutaram por muito tempo e ainda lutam para que esses direitos sejam garantidos, pois sempre são violados de alguma maneira.
Outro momento do livro que certamente irá impactar quem ler o livro é a violência sexual que as mulheres escravizadas sofreram durante o período escravista, mostrado a partir da personagem Tess, podemos ver como aquelas mulheres eram usadas para satisfazer os desejos sexuais daqueles homens escravistas, no presente, mulheres negras são constantemente sexualizadas, seja em propagandas, em filmes, novelas, sendo que muitas vezes seus personagens são papeis em que elas são marginalizadas, como se esse fosse o único destino de uma mulher negra, como se ela não pudesse ter outro futuro. A escravidão que conhecemos através dos livros e filmes não é nada comparado ao que eles viveram, nada consegue simular tamanha desumanização e dor, mas hoje, quando mulheres negras levantam suas vozes contra o sistema que ainda pune os seus, há sempre alguém para dizer que não são questões válidas.
Uma dessas personagens que são confrontadas pela violência, e nos abre a reflexão, é a Sarah, escrava doméstica que cuidava dos afazeres da casa e da alimentação. Em muitos diálogos profundos com Dana, Sarah comenta sobre o processo de venda dos filhos, sobre o luto dessas perdas, e do único “alívio” que possuía por conseguir manter uma de sua prole, Carrie, por ser "inválida" aos olhos do Senhor Tom Weylin e não conseguir vendê-la pela condição de surdez. Esse ódio destilado na vida de Sarah, não está distante da realidade atual das mães negras, que vivem constantemente a repressão policial sobre seus descendentes, em diversos estágios, como: agressão, abuso de poder, sequestro, prisões, e assassinatos, que minam o racismo presente em nossa sociedade e circula nas figuras de poder.
Alice é uma das personagens que mais demonstram toda dor que o regime escravista impôs a mulheres negras, tendo perdido seu marido para a violência da escravidão, ela se vê na situação de ser submetida a ficar com o homem que a separou de seu marido. Rufus Weylin nutria por Alice um sentimento de dominação e abuso, em que de todo jeito ela teria que ficar com ele, nisso Alice acaba tendo filhos com Rufus, os quais ele mantinha na condição da escravidão, com o propósito de ameaçar Alice para que não o deixasse, e Alice queria fazer isso, ela queria lutar e tirar os filhos daquele lugar. Em um momento Rufus acaba os mandando para longe dela, dizendo que os vendeu, nisso Alice entra em profundo desespero e acaba se matando, mostrando como a escravidão machucou essas mães tirando seus filhos, e ainda hoje, mulheres negras choram a morte dos seus.
Relações raciais que percebemos no livro
Em um momento do livro o marido de Dana comunica a família que irá casar com uma mulher negra, sendo que a família dele não aceita bem a novidade, o mesmo acontece quando Dana conta para a sua família que irá se casar com um branco. No primeiro caso, a irmã de Kevin, segundo ele, muda seus valores ao se casar com um homem preconceituoso que chega a compactuar com ideias nazistas, mudando a visão que sua irmã tinha antes do casamento, onde ele ainda acreditava que ela seria adepta da união. Após o anúncio do noivado, e a rejeição, opta por se afastar dela. No caso de Dana, fica explícita a tristeza e rancor do tio, que além das cicatrizes que lida do passado escravista traumático, se preocupa de não ter sido uma boa figura de homem negro para ela, e por isso procurou um branco. Exemplificando as aflições e dores de muitos homens negros no presente.
Octavio também aprofunda na jornada do casal Dana e Kevin, durante as jornadas são evidenciadas as faltas de zelo e cuidados nas falas de Kevin para ela, não percebendo que a simples existência dela naquele período já tornava sua sobrevivência hostil. Em algumas situações ele supõe conclusões ou ideias que lhe faltam bom-senso e ferem Dana, demonstrando as pequenas agressões que existem em relacionamentos inter-raciais que podem ocorrer em diferentes fases além da amorosa como também nas relações de amizade.
Outra relação pontuada, se é que podemos assim chamar, é a dominação de Rufus sobre o corpo de Alice, ele a violenta verbal, sexual e fisicamente diversas vezes, colocando sempre seus sentimentos e interesses acima dos dela. Chegando em dado momento, de leitura difícil mostrando que acha mais fácil assumir que abusa de Alice do que afirmar seu amor por ela, uma mulher negra.
Este texto foi produzido como um comentário, feito a partir da leitura Kindred - Laços de Sangue, escrito pela Octavia Butler.
Comentários dos autores: Durante a leitura desta obra, fui atravessado por novas ideias, visões e debates, como as políticas implicadas em relacionamentos étnicos-raciais, não possuía esse olhar e acreditava não existir linhas de poder ou debates raciais no campo do amor. Tolice da minha parte. Analisando os relacionamentos tanto de Dana e Kevin quanto de Alice e Rufus existe uma hierarquia social e ainda, a presença de violência, aprofundo mais minha análise no subcapítulo “Relações Raciais”.
Outra questão são os detalhes do cotidiano no período escravista, Octavia escreve com excelência, nos fazendo refletir sobre os mínimos detalhes como a dominação escravista que chega nas infâncias das crianças escravizadas, que no tempo livre brincam de se venderem, com direito ao comentário doloroso de um deles que reprime a que não concordava com o valor que lhe fora atribuído e afirma que não tinha o direito de reclamação afinal, quando foi sua vez ele e a mãe também não tiveram. Foi um relato rápido durante a obra, mas que me fez refletir muito sobre o ciclo de violência nesse período, mas em suma, foi uma leitura profunda e carregarei essa obra e seus personagens para o resto de minha vida, irei revisitar várias e várias vezes.
Na leitura, percebemos que lemos incontáveis livros de história sobre o passado escravista, acreditávamos que conseguiríamos mensurar essa dor tão profunda, lendo Kindred - Laços de Sangue percebemos que não, é impossível, a cada página lida era uma dor diferente, entendemos que são muitas as cicatrizes deixadas pelo passado escravista, mais ainda, percebemos como esse passado ainda ecoa tão forte, percebemos que sempre doí um pouco mais.
COMO CITAR
ALMEIDA, Natália Alves De; NUNES, Douglas Duarte. O passado sempre me visita e ele doía sempre um pouco mais..... Literando - Projeto Revista Problematiza Aê!, ed. 05, v. 01, jun. 2021. Disponível em <https://revistaproblematiza.wixsite.com/inicio/lt001>.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Octavia. Kindred – Laços de Sangue. 2º Edição. Morro Branco: São Paulo, 2018.
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