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A CHUVA QUE OS FIZERAM TRANSBORDAR

  • Foto do escritor: Laís F. F. Dutra & Vitor A. S. Alecrim
    Laís F. F. Dutra & Vitor A. S. Alecrim
  • 26 de nov. de 2021
  • 8 min de leitura

LITERANDO A HISTÓRIA

PRPA - Projeto Revista Problematiza Aê! NOV. 2021 Ano I Nº 010

Por LAÍS FERNANDA FERNANDES DUTRA [1]

Por VITOR ALVES SOUZA ALECRIM [2]

CONTO: TRANSBORDANDO CONTRA Vocês!

LIVRO DE COLETÂNEA DE CONTOS: OS CONTOS DE OZBORUZS & TRYKXHIA

AUTOR: VITOR ALVES SOUZA ALECRIM




Sabe o que acho de interessante na Literatura? A capacidade de comunicar, a intertextualidade presente, à medida que leio sempre acabo visitando outros lugares, memórias, contextos ou imaginando realidades das mais diversas. ‘Transbordando sobre vocês’ me causa essa mesma sensação, ultrapassa o texto, ultrapassa o universo criado, e se tratando de conto, nos permite estar em contato com uma densidade tremenda, que personagem é esse que de cara já lança suas considerações sobre a (des)humanidade? E será que por residir em um mundo tão caótico que ler o que é escrito me faz concordar com o narrador? Que mundo é esse que permitiu a uma menina experienciar dor e raiva de forma tão intensa?


Enquanto estudantes de História precisamos considerar que o passado não é recuperado, se distanciar da noção de real, e abraçar a noção de representações, e, portanto, entender que é mais sobre perspectivas e interpretações, logo a gente tem representações do passado. Pensar os contos, pensar a Literatura dita fantástica, é justamente se ater a outro estilo de escrita, mas que permite abarcar essas representações por outros vieses, estimulando assim a imaginação do estudante. É desse espaço imaginativo que acabo me interessando, e no conto entender esse universo afrofuturista distópico, em que o narrador acaba sendo guiado pela luz para sonhos, um universo conflituoso, descrito de início pelo narrador como sendo “uma realidade de longa exploração e desumanidade”, uma realidade que destrói os seus, e que tenta a todo momento “legitimar essa crença, de que a humanos de raça pura, de sangue”. Se eu pudesse eu diria ao narrador que existem outros contextos em que esses mesmos humanos reivindicaram o mesmo discurso... e como sempre o resultado é desastroso. Sendo perceptível no trecho:

Que acaba por me lembrar da tese de Sueli Carneiro sobre os dispositivos de racialidade, onde tem-se o não ser como fundamento do ser, o ser sendo o branco e o não-ser sendo o negro ou o indígena, ela afirma que se constrói a referência do que é bom para o mundo, onde o homem branco ocupa esse local. Como não enxergar semelhanças com a realidade presente? Me leva a refletir sobre a construção no conto em que em um mundo devastado, existiu uma narrativa que priorizava a vida de homens brancos em detrimento de pessoas negras, envoltos em discursos religiosos, que justificavam 10 anos de escravidão, 10 anos sobrevivendo...


Nessa realidade que se apresenta dois grupos, os destinados a cidade flutuante, todas pessoas brancas, privilegiados (e residiria nessa realidade apenas homens ou mulheres também?) e na VALA é que era o espaço destinado as pessoas negras, que moravam em buracos na terra a baixo da cidade flutuante, caminhavam por vielas, quase como um flash em um sonho o narrador viu a situação que as pessoas da VALA eram submetidas, foram escravizadas pelos da cidade de cima. É nesse sentido que reflito sobre o espaço que o conto abre para imaginar os desdobramentos até aquele momento, até o momento que nenhum outro meio que não seja a violência seja possível, no ápice da revolta é que o conto acontece, mas e os antecedentes? Como os outros contos desse livro se conectam? Quem é o narrador e porque ele se envereda em sonhos e realidades alheias?


O conto parte da narrativa mais descritiva da realidade até encontramos com a garota da VALA, que em sonho nos trouxe a uma cena, que homens da cidade flutuante desciam para a vala, mas não consegui captar o que eles iriam fazer ao certo, ainda que o alerta de “Irão fazer chover sobre nós” e esses sujeitos fugindo e buscando refúgio me faz perceber que não seria algo bom. Em outro sonho a cena muda para a garota e sua mãe em um diálogo quase como despedida, nesse momento me questiono que vozes seriam essas que ela escutava? Seriam vozes que faziam parte dela? Seria a intuição? De fato curioso, mas no momento de desespero logo se depararam com esses homens de armadura que desciam para a VALA para punir aqueles que não possuíam bom rendimento, e foi assim que a mãe da garota morreu, queimada por não cumprir metas.

Tem algo instigante nessa parte, a religiosidade presente, quem seria o Pontífice? As atrocidades dessa realidade eram cometidas em nome de qual religião? Quais crenças? E o que demanda tamanha produtividade? O que essas pessoas eram obrigadas a fazer? Confesso que de todo o diálogo no momento em que disseram que uma criança negra a menos não faria diferença, me perguntei por que aquela frase me faria sentir a dor que senti, é nesse instante que me vejo embaraçada, pensando em outras realidades, talvez a minha, que crianças negras desaparecem e sequer existe comoção ou preocupação, a fala desse sujeito soou tão natural, mas existe o meu lado de não querer naturalizar a situação. A problemática na frase está atrelada a esse constante desumanizar, e talvez seja nessa frase que o autor aprofunda o que diz de início, agora a gente entende melhor para quem a violência e desumanização é destinada, afinal existem dois grupos, existem quem tem o privilégio de flutuar, e quem sem escolhas precisa sobreviver esforçando-se para não sucumbir na terra.


O homem de capa traz um pouco dessa trajetória, dos conflitos e das dores que esse grupo percorreu. É interessante pensar como era aquela terra, o lugar que serviu como ponto de comércio nos remete a África, apesar de ter uma nova configuração, apesar das mudanças a qual esse mundo sofreu. Que narrador é esse que caminha por realidades e sonhos, e poderíamos defini-los tão simplesmente como sonho? Seria este, um sonho ruim?

A cidade flutuante constituiu-se a base de muito sangue do povo que residia na África, o único lugar habitável e mais uma vez os brancos tomam as coisas como se fosse por direito, ops... nesse caso, nesse conto é a primeira vez, mas nós sabemos de outros tempos onde essa mesma história se repete.


É interessante perceber como a narrativa nos leva a compreender a revolta, a injustiça, o ódio que corre nas veias, a dor que é transformada em resistência. Longe de um discurso de pacifismo, de que não havia revolta com aquilo, a gente percebe nesse universo o anseio por uma revolução. Havia um grupo que se rebelava, haviam aqueles que lutavam pelo fim desse sistema. E a discussão em torno da ideia de liberdade, o que é ser livre, quando existem tantas amarras para aprisionar, mas com toda certeza ser considerado objeto, ser violentado não incorpora a ideia de liberdade, não existe liberdade em situação de opressão.

A chuva os fez transbordar naqueles que os oprimiam, o que gerou a revolta? A chuva que derramara, e me parece que a chuva não era apenas chuva, me parece que é uma metáfora que abarca justamente a dimensão de uma cidade flutuante que os restos são destinados a vala, mas da mesma forma dá conta da ideia de revolução, eles fizeram chover e como vingança, eles vão transbordar sobre aquela cidade, me parece impactante pensar assim, soa a voz do Djonga no ouvindo alegando ‘fogo nos racistas’, mas ao mesmo tempo é o anseio de algo que tanto queremos, mas temos dúvida de acontecer, será que é o que chamamos de justiça? Ou o que chamamos de reparação histórica? Isso me faz olhar ou lembrar de tudo que já vivemos, dos crimes cometidos a inúmeros grupos, das injustiças cometidas e na não punição desses indivíduos...


A liberdade só é possível com a guerra, com a revolta a todo momento, essa ideia volta ao ler o texto, são chamados de Incolorios, são tratados como animais, como diria Rodrigo Turin ao descrever a semântica neoliberal, são tempos precários, mundos movidos a lucro, como conseguiram lucrar quando estavam diante do único lugar habitável? É evocar o que entendemos como antropoceno, e mais uma vez assistir a terra rir daqueles que nela residem, a relação dos indivíduos e os recursos, a constante exploração, aquilo que os mantém vivos é o eles mesmos aos poucos fazem ruir.

Nesse espaço de insurreição, de vingar a morte, vingar a tortura e violência, vingar a queima de muitas pessoas, vingar a morte de parentes, de filhos, de pais, de irmãos e amantes. Movida pela revolta, é como se se dança enquanto perfurava armaduras que sem distinção representava aqueles que constantemente se emprenhava em fazer da vida dela uma dor diária, que ia reduzindo a existência dos seus das mais diversas formas.


O pontífice não conseguiu proteger o que era de Deus, o que? Uma construção com uma cruz vermelha? Quando o velho diz que nunca viu leões sendo liderados por cordeiros, que ela seria uma negra desprovida de luz, é interessante a dualidade, o bom e o ruim, o bem e o mal, a crença de que Deus rejeitou pessoas, tudo fundamentando a ideia de que eles são escolhidos, que são melhores do que outros, ideia de merecimento. Como o velho disse:

“Nunca queremos a verdade, nós só queremos o controle, queremos o discurso vencedor, nós apenas queremos aquilo que queremos, o conveniente a nós, mas para tudo isso precisávamos de um meio de legitimação”.

A parte mais interessante é o diálogo interno da personagem, como lidar com as vozes constantes que a assombram? Qual o nome dessa garota negra? O conto deixa um espaço de continuação, ele me convida a imaginar possíveis resposta a minhas inúmeras perguntas.

NOTA DO AUTOR: O futuro era uma pequena chama do pós-guerra, o futuro se formava nas bases de um passado racista, de um passado de dor, de ódio.

“Através dos olhos de Safyra, eu podia ver corpos destroçados pelo chão, brancos soldados do Pontífice, todos perfurados pelos espinhos metálicos de Safyra. A imagem que se formava a minha frente era o massacre dos massacrados. Braços arrancados, cabeça decapitadas, soldados que ainda lutavam de alguma forma para respirar por mais alguns minutos, mesmo sabendo que lá estava o seu algoz. Em um escudo tão reluzente quanto a prata que cobria as catedrais da Cidade da Flutuante, eu podia ver o reflexo de Safyra, ela parecia uma pintura que um dia vimos nos livros ainda não queimados.
Safyra encarava o céu cinza daquele mundo, com brilho algum nos olhos, sem esperança. Sobre seu corpo com marcas de queimando, havia muito sangue assim como por todo o chão e escombros sobre o qual ela se sentava. Lá estava a Dama dos Cabelos Cacheados, aquela que brilho algum almejava, está seria o nome da obra. Pelo menos isso seria o que eu escreveria na pintura daquele momento, mas a realidade tende a ser decepcionante.
A real pintura era uma Safyra de mãos que tremiam, e da qual eu podia sentir todo o prazer que Vanylla proporcionava a Safyra, o prazer da violência, da morte, da vingança, do ódio. Os olhos não viam esperança, os olhos não a almejavam. Aqueles olhos da obra da realidade emanava o terror da violência e somente dela, aqueles eram os olhos de Vanylla.
A composição da obra, era uma Safyra sobre o poder de Vanylla, qual estampava um sorriso enquanto pisava sobre uma cabeça decepada de um soldado branco. A suas costas os exércitos guerreavam, uma matança generalizada ocorria. Safyra havia trago a ira de todos e sua própria ira. Nada podia evitá-la de causar o massacre de cada soldado branco a sua frente”
(O Imaginário Mundo De Safyra, Vitor A. S. Alecrim)

COMO CITAR


DUTRA, Laís Fernanda Fernandes; ALECRIM, Vitor Alves Souza . A chuva que os fizeram transbordar . Literando - Projeto Revista Problematiza Aê!, ed. 010, v. 01, nov. 2021. Disponível em <https://revistaproblematiza.wixsite.com/inicio/lt001>.

REFERÊNCIAS


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CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese de Doutorado. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001465832.

DJONGA. Olho de tigre. Rio de Janeiro: Pineapple: 2017. (4 min 44 s) Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=0D84LFKiGbo>.


LIMA, W. J. DE; TEIXEIRA, O. S. HISTÓRIA E LITERATURA FANTÁSTICA, UMA PARCERIA (IM)POSSÍVEL? O caso de “O Senhor dos Anéis”. Outros Tempos: Pesquisa em Foco - História, v. 8, n. 11, 23 maio 2011. Disponível em: https://www.outrostempos.uema.br/index.php/outros_tempos_uema/article/view/75.


MORAES, Dislane Zerbinatti. Aprender História com textos literários: entre modelos de interpretação e construção de significados históricos em sala de aula. In:. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História, Natal, 2013. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/category-items/1-anais-simposios-anpuh/33-snh27.


NOGUEIRA, Léo Carrer .HISTÓRIA E LITERATURA – O DEBATE NA SALA DE AULA. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia. [s.d.], Ano 3, N.4, p. 115-125, Julho 2012. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/revista_geth/article/view/292.


TURIN, Rodrigo. Tempos precários, aceleração e semântica neoliberal. Zazie Edições, 2019. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/565de1f1e4b00ddf86b0c66c/t/5d6bbdd368abb200010a6389/1567342037866/PEQUENA+BIBLIOTECA+DE+ENSAIOS_RODRIGO+TURIN_ZAZIE+EDICOES_2019.pdf.


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